segunda-feira, 12 de março de 2007

MULHER DE CAPOTE


“São as mulheres dos Açores”, alguém me explicava. “Fantasmas negros”, pensava eu. Não entendia porque se escondiam. A mulher de capote mais do que uma representação da terra dos meus avós era uma imagem assustadora, uma figura escura, solitária e triste. Tinha eu apenas três anos. Mais tarde viria a ser um símbolo de destaque e de ligação.
Aos dez anos deixei os Açores para a metrópole. Uma adaptação difícil. Ainda hoje recordo a liberdade que perdi. Saía da “minha” ilha para uma cidade grande, onde ninguém se conhecia e cumprimentava, um local já inseguro e sem cor. Aqui as memórias dos Açores ganharam uma importância especial. A mulher de capote passou a ser um símbolo que me ligava a esses “nove barcos” ancorados no meio do oceano.
A ampla capa e o capelo, ora pretos ora azuis do mar, que encobriam a figura feminina identificavam-me. Via as gentes e as ilhas.
Escondidas na concha deste vestuário, deixei de as ver como algo estranho, pelo contrário, transmitiam-me um certo encanto. A mulher dava brilho ao manto enorme e escuro que a cobria.
Contam-me que o traje era muito usado por volta do século XVII e XVIII, nas famílias mais abastadas, quer por mulheres mais velhas quer por raparigas novas. Umas para irem à missa, as outras para encontros mais reservados...
Um manto afinal com certas vantagens e até algum misticismo, pois envolvendo todo o corpo e com o grande capuz pela cabeça ninguém sabia quem ali estava, apenas o calçado as podia denunciar. Era de tal maneira característico da região, que se transmitia de mães para filhas, por testamento e com grande apreço. Um gesto que não se perde no tempo. Quem já não herdou coisas dos pais ou dos avós, talvez não de uma modo tão formal mas igualmente com grande significado?
Pelas ruas das várias ilhas contrastava o negrume dos mantos da nobreza local, com o colorido das roupas da classe mais pobre. Considerado então um traje de luxo, a mulher que o vestia mostrava uma importante posição social e económica, já que esta não era uma vestimenta que se conseguisse por meia dúzia de tostões.
A influência Flamenga (especialmente de Bruges) está possivelmente na origem deste uso, pensando-se ainda que tenha a ver com imagens da Virgem e das obras bíblicas.
Entretanto, por volta de 1930-40, a mudança de hábitos, próprio da evolução dos tempos, levaram ao abandono do uso do capote pelas açorianas mas a sua imagem mantém-se ainda hoje como marca dos Açores.
A dúvida é se as pessoas sabem que esta não foi uma simples imagem criada numa secretária; se conhecem a história da mulher de capote.
Confesso que provavelmente também me teria ficado pela primeira definição das “mulheres dos Açores”, mas o facto de ter partido para o continente, de sentir a necessidade de me manter próxima da região, fez-me questionar mais sobre a “minha” terra. Querer saber tudo. É comum o sentimento de que o que está próximo, um dia conhecemos. Podemos viajar por todo o mundo, conhecer os mais famosos monumentos e espantosos locais mas provavelmente nunca fomos à ilha ao lado. Não conhecemos as suas riquezas, costumes, gastronomia ou tradições. Acontece ao mais comum dos cidadãos.
A mulher de capote é característica da mulher açoriana mas é principalmente o reflexo do desenvolvimento de uma região.

Filipa Simas


in Correio dos Açores, 09 de Março de 2007

1 comentário:

Eduardo Trindade disse...

Muito interessante o teu texto, ao mesmo tempo esclarecedor e suavemente nostálgico!
Acabo de voltar de uma viagem aos Açores e as tuas palavras fizeram a saudade bater mais forte aqui...
Abraços!