quinta-feira, 5 de julho de 2007

Found in Translation: uma vida luso-americana


Os traços biográficos da minha vida de emigrante açoriana, durante 34 anos na Califórnia e, se me permitem, de imigrante regressada, a viver nos Açores há 20 anos, são os seguintes:

Nasci na Ilha do Pico, em Santo Amaro, uma freguesia situada mesmo perto do mar na costa norte da ilha, uma freguesia virada para a bonita ilha de São Jorge. Como entrei neste mundo em 1950, numa altura em que, para as mulheres das freguesias, os partos eram, digamos, “caseiros”, nasci na casa dos meus pais, situada no caminho de baixo da freguesia, mesmo perto da costa. Por isso, acho que as minhas primeiras recordações são do mar... Mas essa experiência terminou cedo, quando eu tinha apenas 2 anos e meio e emigrámos para os EUA. E aqui encontro, talvez, a primeira razão que me levou a voltar aos Açores para viver. Sinto que saí muito novinha destas ilhas, onde a natureza nos toca de uma forma muito palpável e profunda, sinto que precisava de mais Açores, de mais mar, de mais ilha...

Quando eu tinha 2 anos, então, o meu pai foi picado pelo bichinho da América, pelo chamado “American Dream”, e acabamos por emigrar para a Califórnia, em Abril de 1953. Ora, emigrar dos Açores para a Amércia nessa altura era muito diferente do que é hoje: os transportes eram muito menos desenvolvidos; as viagens aconteciam com muito menos frequência; a despedida podia ser a última; os contactos eram muito mais difíceis de fazer. Telefone no Pico nessa altura, nem se sonhava, e muito menos televisão e Internet, claro! Nem havia electricidade nem agua canalizada nas casas das freguesias! Lembro-me que levava mais de um mês para uma carta fazer a grande travessia de barco e por terra. Acho que emigrar nessa altura seria, talvez, o equivalente de ir para a Lua, para outro mundo.

No entanto, nesta recordação das cartas que vinham dos Açores, encontro outro motivo que me levou a trocar a América pelos Açores, a trocar a Califórnia por São Miguel. Quando se fala de cartas nesta altura, geralmente pensa-se nas cartas que chegavam da América com aquelas deliciosas notas de dólar que tanto jeito davam à vida! Mas no meu caso, as recordações são de cartas dos Açores, esperadas com grande alegria e saudade, que chegavam cheias de notícias da vida do dia a dia da família que tinha ficado atrás. Ou seja, em vez de um sítio que tínhamos largado, para esquecer e começar uma nova vida, os Açores sempre foram relevantes e importantes para mim, porque era lá que vivia a família, pessoas relevantes e importantes na minha vida. Era a Tia Ana que estava a tratar das gêmeas recém nascidas; era o Tio Manuel que estava melhor depois da gripe apanhada nas vindimas; era a Tio Beatriz que estava a bordar uma toalha de mesa para o enxoval da Prima Ângela; era o Tio Luís que estava a pescar mais o Primo Joaquim quando o vento virou e viram-se e desejaram-se para chegar a terra...Lembro-me das incessantes perguntas que fiz a minha mãe quando viemos de visita em 1973, e eu tentava associar os nomes que tão bem conhecia, com as respectivas caras de carne e osso que via à minha frente, tentando juntar as peças de uma espécie de puzzle que aquelas cartas tinham traçado ao longo dos anos! Pergunta a canção popular, “Cartas de amor, quem as não tem?” E eu digo: “Cartas dos Açores, quem as recorda?”

Bem, antes desta visita pré-25-de-Abril, na década de 70, tive a experiência muito especial de passar um ano no Pico quando eu tinha 7 anos. O meu avô materno tinha morrido e, enquanto o meu pai ficou a trabalhar para pagar a passagens, e juntou-se a nós durante apenas umas semanas no fim, minha mãe levou-me, junto com minhas 2 irmãs, de visita ao Pico para matar a grande saudade que sentia. Agora, acontece que esse ano que vivemos em Santo Amaro, coincidiu com o ano de actividade do Vulcão dos Capelinhos; ou seja, de Setembro de 1957 a Outubro de 1958. Neste nosso ano de 2007, em que comemoramos os 50 anos dessa erupção, lembro-me vivamente das minhas experiências do Vulção, que eu pensava ser um espécie de monstro, pois os adultos não nos deixavam chegar por lá perto, mas o ruído das explosões atravessava o Canal do Pico-Faial, enquanto o fumo durante o dia, e os clarões durante a noite, pairavam nos Céus entre as duas ilhas. Acho que essa experiência viva da natureza vulcânica do solo açoriano também me marcou profundamente e me ligou mais intimamente com estas ilhas. Ou seja, acho que a actividade telúrica dos Açores entrou no meu imaginário de criança, e lá vive para sempre, com os outros medos e pavores.

No entanto, apesar dos sustos e mistérios do Vulcão dos Capelinhos, a vida continava, e a normalidade do dia-a-dia impunha-se, para as pessoas em geral, e para mim também. Portanto, como tinha acabado de fazer 7 anos de idade, frequentei a primeira classe com as outras crianças da altura. Fiquei admirada com as diferenças que encontrei quando comparava esta experiência, com a que tinha tido na Califórnia no ano anterior, ao frequentar o primeiro ano com 6 anos de idade. Achei o ensino cá muito mais exigente. Por exemplo, aprendia-se a somar, subtrair, multiplicar e dividir, tudo na primeira classe, enquanto na América ficava-se por somas e subtrações. Claro que agora percebo que, enquanto nos Estados Unidos já se aprendia dentro de uma estructura pedagógica baseada em 12 anos de ensino, a escolaridade nos Açores nessa altura era, para a maioria, de apenas 4 anos, portanto era preciso aproveitar o tempo! Para além da matemática, lembro-me também do livro de Português, com aquelas imagens tão coloridas para ilustrar aqueles sons tão diferentes do Inglês; e aqueles acentos nas letras, que pareciam rabiscos e enfeitos exquezitos! Cedilhas, tildes, circunflexos; -ãos e -ens de sobra...

Sei que esta experiência foi muito importante por consolidar, por tornar palpável o eixo à volta do qual a minha vida tem sempre girado: a língua, o que nos distingue como seres humanos. Esta questão da língua é fundamental, pois desde que me lembro, a minha vida tem sido sempre vivida entre o Português e o Inglês. De facto, esta experiência de migração em tenra idade fez-me tomar consciência de uma realidade – as pessoas muitas vezes falam sem se entenderem, tantas vezes quando falam a mesma língua, infelizmente, mas sempre que falam línguas diferentes e deconhecidas para uns e outros. Senti isto na pele desde muito cedo, e tal impacto teve esta realidade na minha vida, que me lembro perfeitamente de ter ficado tão admirada quando cheguei aos Açores em 1957 e ouvi os cães a ladrarem na mesma língua dos cães da América, pois, na minha lógica de criança, esperava que os animais também falassem línguas diferentes! Que alívio; pelo menos os animas se entendiam!

Esta vivência entre duas línguas quer dizer que existo, como ser humano e como mulher, entre duas culturas, entre duas realidades. E é por isso que dou a esta minha reflexão o título “Found in Translation: uma Vida Luso-Americana”. Todos conhecemos a expressão em Inglês “Lost in Translation”, termo que capta tão bem a enorme dificuldade que existe, tantas vezes, em traduzir uma palavra, um conceito, uma experiência, como todos aqui sabem. Sou traductora, sou professora de Tradução e sei muito bem que é uma tarefa dificílima e que, por vezes, muito se “perde” com a tradução, como diz a expressão em Inglês. São os riscos de viver entre... No entanto, sei que é nesse espaço entre línguas, entre culturas, que encontro a minha identidade, que encontro a expressão, a tradução, de quem sou, “found in translation”...

Para terminar, não posso deixar de referir esta cidade de Ponta Delgada, porque é no espaço físico desta cidade que encontro o espaço existencial que me permite viver nos Açores e sentir-me tão bem a viver nos Açores. O Pico é uma ilha muito especial, e adoro visitá-la, mas a verdade é que não conseguia viver lá todo ano. É em P. Delgada que encontro esse espaço entre os EUA e os Açores que me desafia a expressar o meu ser, a traduzir o meu potencial...


Rosa Maria Neves Simas
9 de Junho de 2007

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